Doar para indivíduos ou para causas: considerações sobre um debate pouco explorado no Brasil

30 de junho de 2022

Por Stellinha Moraes

Uma vez, em uma formação sobre Crises Humanitárias e Estratégias de resposta, ouvi de uma das gestoras da ONG Médico Sem Fronteiras que o primeiro passo para oferecer possíveis soluções a crises humanitárias é fortalecer os movimentos e equipamentos sociais já instalados e atuantes no território e na causa, de forma estratégica e alinhadas, e trabalhar em conjunto nas principais necessidades locais. Ela também nos contou que os movimentos sociais ou religiosos que chegam em determinado território querendo aplicar suas metodologias de forma direta e impositiva mais atrapalham do que ajudam.


Em outra ocasião, também em uma formação, agora em Direitos Humanos e Responsabilidade Social, ouvi algo muito parecido da Mariana Serra, experiente líder social em territórios de crises humanitárias e gestora da ONG Volunteer Vacation. Ela disse que o Haiti tinha virado um grande depósito de roupas por causa da absurda doação de vestimentas que os países do mundo todo enviavam, no achismo de que a maior necessidade do povo era os itens de vestuário, enquanto ONGs locais não tinham recurso para alimentar aqueles que mais precisavam.


O ser humano se compadece pelas causas sociais, principal e lamentavelmente por aquelas que são veiculadas na mídia em um formato mais sensacionalista. A trama pode piorar se a causa tiver um rosto, nome, sobrenome e CPF. Isso ajuda as pessoas a paternalizarem, endeusarem e tomarem a causa para si, transformando-a em uma causa individual.


E qual o desafio disso? 


Quando personificamos uma causa em uma única pessoa e a individualizamos, como aconteceu no caso da Dona Janete, idosa que apareceu chorando com fome na TV, essa causa – do combate à fome, no caso –, em seu formato social e coletivo, corre grande risco de ser esvaziada. E eu explico o porquê.


O caso isolado sempre faz parte de um todo. O ser humano tem empatia e quer doar, mas, movido pelo sentimento – e muitas vezes até por um sentimento de “salvador” –, doa errado: doa para um CPF, que muitas vezes acumula valores altos de muitas doações. Enquanto isso, causas legítimas, que atendem muitos na mesma situação de privação de direitos, são esvaziadas, esquecidas e enfraquecidas. Não é que essas pessoas, os CPFs, não merecem ser ajudados, mas a questão é mais estrutural.


A verdadeira transformação social está na união de todos os setores da sociedade – o 1º, enquanto Estado, garantidor legítimo dos direitos das pessoas; o 2º, Empresas e Mercado financeiro; e o 3º,  a Sociedade Civil Organizada (que inclui as ONGs e os movimentos sociais).


Nesse sentido, é preciso unir forças, fortalecer causas sociais por meio de ONGs e movimentos sociais que já têm sua atuação legitimada tanto na temática como no território. Deles, sairão metodologias próprias para resolver as problemáticas, logísticas testadas e aprovadas na entrega de doações e afins, e até mesmo a interlocução entre os principais atores do território, seja a parte pública ou a rede de usuários.


Nesse sentido, o Terceiro Setor já cria soluções sociais há décadas, como um laboratório que testa e aprova tecnologias sociais de real transformação social. Só falta agora a Sociedade Civil – a população, a mídia, entre outros – acreditar e investir coletiva e socialmente nesse setor, para que a mudança não seja oferecida apenas para poucos indivíduos, mas ocorra de forma sistêmica, profunda  e sustentável.



Stellinha Moraes é empreendedora social, assistente social, consultora do 3º setor e criadora de tecnologias sociais.


Revisão: Daiany França Saldanha e Flávia D'Angelo (Phomenta).




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