Trabalho no Terceiro Setor desde 2006 e foi só na pandemia do Covid19, em 2020, que conheci o termo Autocuidado.
Na verdade, foi só nestes últimos anos que consegui rever minha relação com o trabalho, e passei a refletir que não parecia certo que eu usasse meus finais de semana e tempos livres apenas para descansar da exaustão física e mental inerente das 40 horas semanais trabalhadas dentro de Oscs, no trabalho com crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, durante mais de 15 anos.
Havia mais vida para viver fora da causa que escolhi. Haviam outros sonhos e planos que não poderiam ser realizados se eu não reavaliasse a forma com que eu lidava com as minhas prioridades, sem aprender a dizer não. E tudo isso também era autocuidado.
Ao contrário do que é prioritariamente veiculado, o autocuidado, ou a ideia de que a pessoa deveria dar atenção a si mesma, sua saúde, suas emoções e seus desejos, não saiu das revistas de modas e das propagandas para vender maquiagem. Esse é um termo que tem sua origem na área da assistência à saúde e à justiça social.
A psiquiatra e escritora indiana Pooja Lakshmin, autora do livro “Autocuidado de verdade” (2023) descreve a construção deste conceito através das décadas, a partir dos anos de 1950, explicando porque o sentido desta palavra tem mudado tanto com o passar dos anos. Pooja relata:
Audre Lorde, escritora americana, ativista dos direitos civis e homossexuais, desenvolveu essa ideia conceituando o autocuidado como um ato poderoso para reivindicar espaço em uma sociedade que exigia que minorias e grupos oprimidos se mantivessem pequenos ou invisíveis.
“Cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é autopreservação, e isso sim é um ato de político” (Audre Lorde, 1988)
A autora afirma: “Chegou a hora de uma nova evolução da definição do termo, com um olhar mais profundo, voltado para dentro e o desenvolvimento de um método interno confiável e consciente, algo que vem de dentro de você”.
O conceito de autocuidado, como é vendido na mídia hoje, não está a serviço do bem-estar do indivíduo, mas sim, está em favor da venda de produtos e procedimentos que reforçam a comparação e a busca pela perfeição. Dessa forma, ele se torna difícil de se manter a longo prazo, gera frustração e culpa em quem não alcança as metas de beleza impostas.
“O autocuidado acaba sendo um fardo, só um item a mais na lista de coisas pelas quais as mulheres se sentem culpadas por não ter direito. Chamo isso de tirania do autocuidado”, diz Pooja, sugerindo que ampliemos nossa percepção de cuidado interno para aspectos que vão além da estética, observando dessa forma:
. Estabelecer limites com os outros:
Equilibrando as necessidades das pessoas próximas a você e as suas próprias necessidades, aprendendo a dizer não e definir os seus limites sem culpa.
. Tratar a si mesma com compaixão:
Olhando com firmeza e sinceridade para o que você precisa e deseja e te dar a permissão de obter isso, se permitindo ser suficientemente boa.
. Aproximar-se de si mesma:
Fortalecendo sua versão mais autêntica e o que você é de verdade, incluindo seus principais valores, crenças e desejos.
. Utilizar seu poder para o bem:
Olhando para dentro de si e tomando decisões baseadas nisso. Envolve dizer o que funciona e o que não funciona para você, encarando e contrapondo a toxicidade que a nossa cultura impõe. Esse autocuidado é uma afirmação de poder.
Ao relacionar o autocuidado dentro do trabalho, e no Terceiro Setor, percebemos que o autocuidado individual é útil, mas ele se torna mais efetivo e com melhores resultados, se forem institucionalizados, tomando caráter de cuidado coletivo.
A Profª Mestre em Direito, Lisa Chamberlain, da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, explorou essa relação em seu artigo “Do autocuidado ao cuidado coletivo”, de 2020, onde elenca pontos a serem observados no que ela chamada de “cultura do ativismo”.
A autora afirma que, em trabalhos como a defesa dos direitos humanos, o autossacrifício é uma norma cultural, onde a defensora ou o defensor pode esperar, e até enaltecer, o colocar-se em risco. “Essas pessoas trabalham longas horas, raramente tiram folga e ignoram a necessidade de cuidar de sua saúde e bem-estar [...] elas acreditam que o trauma real é aquele vivenciado por aqueles que são beneficiários de seu trabalho e, portanto se perguntam: Quem somos nós para nos darmos ao luxo de fazer algo tão indulgente como ir ao cinema ou fazer uma aula de yoga”.
Citando também a ativista Audre Lorde, Lisa defende que o Autocuidado não é apenas um cuidado consigo mesmo, mas sim um ato político: “O autocuidado não é um complemento ao trabalho de um defensor de direitos humanos, a ser exercido apenas quando houver tempo ou recursos, mas é considerado parte fundamental de seu próprio trabalho”.
Complementando e ampliando o aspecto do cuidado individual, a autora expõe como isso pode ser feito de forma coletiva pelas organizações sociais:
“Uma abordagem centrada no autocuidado convida agentes de mudança a refletirem se é verdade que o que precisa ser feito não pode esperar que se alimentem, durmam, descansem e se divirtam um pouco” (Lisa Chamberlain, 2020)
Um exemplo inovador de organizações que entenderam e aderiram a este conceito de cuidado coletivo, diz Lisa, é o “Dia do Travesseiro”. Uma ocasião usada para contemplar aquele dia em que a pessoa não consegue se levantar da cama e ir trabalhar devido à exaustão intensa, a uma crise de ansiedade, depressão ou outras razões possíveis. A autora sugere que as organizações podem permitir que toda a equipe tenha um número definido de dias do travesseiro por ano.
Falar em autocuidado, primeiramente, é falar da valorização da vida. Da sua vida antes da vida do outro.
Aprender e reconhecer que fora dos padrões estéticos estamos falando de autoconhecimento, autopercepção e definição de limites, nos direciona para um cuidado que vai além de uma lista de tarefas e que se projeta para uma ação a longo prazo. Dessa forma, afirmamos que a solução para outra pessoa, não necessariamente é a sua.
Perceba, neste momento como esse assunto chega para você:
Para se aprofundar no tema de estratégias em saúde mental para períodos estressantes, em nível pessoal e organizacional, te indico o texto no link abaixo:
De uma forma mais abrangente, quando investimos em atitudes que nos fortalecem e nos deixam mais saudáveis, estamos influenciando uma mudança sistêmica que fortalece também o nosso setor e as pessoas que fazem parte dele.
No entanto, este também é um chamado para uma política de cuidado coletivo, que perpassa as esferas organizacionais e as políticas públicas, principalmente abraçadas pelas pessoas que mais influenciam as dinâmicas sociais, ou seja, suas lideranças.
Referências:
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